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Repercussões da Medida Provisória n. 881/2019 sobre o Código Civil

Por João Quinelato de Queiroz e Rodrigo da Guia Silva.


O artigo fala sobre a MP 881/2019, conhecida como a “MP da Liberdade Econômica”, que aborda as repercussões dessa importante alteração legislativa ao Código Civil.



A comunidade jurídica foi surpreendida pela recente edição da Medida Provisória nº 881, de 30 de abril de 2019, diploma popularmente intitulado de “MP da Liberdade Econômica”, por ser imbuído de um escopo alegadamente liberal em matéria econômica, o que se depreende do próprio título conferido às suas disposições nucleares


– “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. A referida surpresa por parte dos operadores e estudiosos do direito não remonta, contudo, à orientação político- econômica da medida editada pelo Presidente da República, mas sim a fatores como (i) a ausência (ao menos, em termos expressivos) de convocação prévia da comunidade política e jurídica para participação no debate sobre os impactos das medidas e (ii) a opção da espécie legislativa da medida provisória para veicular a matéria.


1. DA ESPÉCIE LEGISLATIVA ADOTADA


Muito mais do que mero valor simbólico, a disponibilização de um espaço de livre debate entre os diversos integrantes da comunidade jurídica e política representaria um fundamental aspecto para a aferição da legitimidade do novo diploma legal. O quadro se agrava em razão da própria espécie legislativa adotada pelo governo. Sem se adentrar na delicada análise sobre o atendimento aos requisitos positivos autorizadores da adoção de medidas provisórias – relevância e urgência, ex vi do art. 62, caput, da Constituição Federal (CF) –, deve-se ter em mente a efemeridade que pode vir a caracterizar a vigência desses diplomas. Isso porque, como se sabe, o prazo máximo de vigência da medida provisória na pendência de deliberação do Congresso Nacional, já se considerando a única prorrogação possível, é de 120 dias (art. 62, §§ 3º e 7º, da CF).


Tais circunstâncias fazem com que o estabelecimento das normas atinentes à Declaração de Direitos de Liberdade Econômica pela via da medida provisória carregue consigo, a um só tempo, a indesejada aceleração do debate e o risco de uma acentuada insegurança jurídica. A aceleração decorre do curto prazo de que dispõe o Congresso Nacional para a apreciação e votação da medida, ao que se associa a determinação constitucional do regime de urgência na sua tramitação na hipótese de não ser apreciada por ambas as Casas em até quarenta e cinco dias (art. 62, §6º).


O risco de insegurança jurídica se manifesta, sobretudo, pela possibilidade fática de que a medida provisória não venha a ser aprovada pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal dentro do prazo máximo de 120 dias. Nessa hipótese de perda da eficácia da MP nº 881/2019, não seria difícil imaginar o crescimento de uma percepção (quiçá posteriormente tida por injustificada) de insegurança jurídica no que diz respeito à regência dos atos praticados no período de vigência da medida.


Em outras palavras, o tiro pode sair pela culatra: o instrumento que visa à expansão da atividade econômica pode impactar negativamente a percepção de segurança jurídica

do investidor e do empreendedor quando estes agentes notarem que todos os negócios jurídicos celebrados sob a vigência da lei anterior ficam, em alguma medida, ameaçados se o Congresso Nacional não converter em lei a MP. Justamente por tais razões é que se poderia cogitar que as matérias veiculadas nessa MP deveriam ser tratadas por meio do processo legislativo ordinário. As disposições constitucionais tendentes a regular essa espécie de questão (notadamente, os §§ 3º, in fine, e 11 do art. 62), embora bem intencionadas, talvez não recebam a mais refletida aplicação, tudo a corroborar uma possível sensação de insegurança jurídica.


Eis, em apertada síntese, algumas das razões pelas quais a tramitação de uma medida provisória não constitui a ocasião ideal para o debate aprofundado sobre matéria de tamanha relevância. Diante, porém, da adoção dessa espécie legislativa, cumpre passar em revista algumas das principais repercussões da MP nº 881/2019 sobre o direito civil, especialmente diante das alterações do Código Civil efetuadas determinadas pelo art. 7º da MP. Em atenção à brevidade da sede, exclui-se, de antemão, o exame dos novos dispositivos destinados a regular o fundo de investimento (arts. 1.368-C e 1.368-D do Código Civil). A presente análise, em qualquer caso, não ostenta qualquer pretensão de enfrentamento conclusivo ou definitivo, movendo-se, ao revés, pelo propósito de enunciação de reflexões que provavelmente haverão de ser cuidadosamente conduzidas pela civilística nacional.


2. DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA


Mencione-se, em primeiro lugar, a nova redação atribuída ao art. 50 do Código Civil, em matéria de desconsideração da personalidade jurídica, a impor novos requisitos autorizadores do levantamento temporário do véu corporativo. Em primeiro lugar, serão afetados os bens somente dos sócios que tiverem sido beneficiados “direta ou indiretamente pelo abuso” (tomada com a cautelosa ampliação a noção de benefício indireto, a fim de responsabilização dos administradores e sócios participantes da gestão), inovando a lei ao restringir o alcance da desconsideração somente aos bens desses sócios. É coerente e bem-vindo o ajuste, na medida em que sócios minoritários e que não participam da gestão não terão seu patrimônio afetado pela conduta desidiosa de seus pares.


A nova redação merece aplauso, ainda, pelo esforço de definição de parâmetros para a configuração dos dois basilares requisitos da desconsideração da personalidade jurídica nos moldes teoria maior adotada pelo Código Civil desde a redação originária do art. 50 – o desvio de finalidade e a confusão patrimonial. Reconhece-se, assim, um espírito estabilizador do novo diploma. Ao prever, de antemão, os requisitos, amplia-se a segurança jurídica ao sócio, que não verá seu patrimônio afetado em decisões judiciais abusivas e estranhas aos critérios ora positivados.


Semelhantes aplausos não merecem, contudo, a exigência, instituída na definição do desvio de finalidade, de que a conduta do administrador ou sócio apta a justificar a desconsideração seja considerada dolosa. Ao deixar de mencionar a possibilidade de conduta culposa desses agentes, a nova redação pode acabar por restringir o espectro de aplicação da desconsideração e frustrar, assim, os credores que busquem legitimamente a satisfação de seus créditos nas hipóteses de conduta antijurídica (independentemente da aferição subjetiva característica ao exame do dolo) dos administradores e sócios abusivos. Além disso, ao exigir-se o dolo, parece a norma distanciar-se da leitura do abuso do direito a partir do seu viés objetivo-finalístico, conforme entendimento consagrado no Enunciado 37 da I Jornada de Direito Civil do CJF.


Especialmente em razão do desenvolvimento doutrinário dessa matéria, mais prudente seria que a política legislativa fosse prudentemente precedida por debate prévio e amplo da medida.


Ao regular a confusão patrimonial, malgrado a técnica legislativa duvidosa insculpida no inciso III do §2º ao mencionar a “descumprimento da autonomia patrimonial”, a nova norma acertadamente consagra o debate anterior havido em doutrina e jurisprudência sobre quais as condutas idôneas a configurar confusão.


A inovação incorpora, também em boa hora, a desconsideração inversa da personalidade jurídica no novo §3º, possibilidade já consolidada na jurisprudência do STJ (v., ilustrativamente, STJ, 3ª T., REsp 1.647.362/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 3/8/2017) e conforme entendimento da Jornada de Direito Civil do CJF (Enunciado 283).


Por derradeiro, o §4º esclarece que “a mera existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração de personalidade jurídica”, o que, em certa medida, ratifica a jurisprudência anterior na medida em que já se consolidava tendência nos julgados de requerer-se a existência de abuso e desvio de finalidade (v., por exemplo, em matéria de redirecionamento de execução fiscal, STJ, 1ª T., REsp 1.775.269/PR, Rel. Min. Gurgel de Faria, julg. em 1/3/19).


3. DA FUNÇÃO SOCIAL


Merece especial atenção, ainda, a transformação sofrida pelo art. 421 do Código Civil. À redação original do caput (“A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”) se acrescentou a afirmação “observado o disposto na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. Coloca-se, então, uma dúvida sobre a interpretação a ser conferida à nova parte final do caput do art. 421. Haver-se-á de se perguntar, em especial: a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica passa a funcionar como norte privilegiado (ou mesmo exclusivo) para a investigação da função social do contrato? Terão sido abandonados os demais valores que usualmente se associam à noção de função social dos contratos? Somente a resposta negativa se conforma propriamente com a Constituição Federal.


Com efeito, não se pode imaginar que o legislador ordinário teria legitimamente extirpado da análise contratual os diversos e complexos valores consagrados pela tábua axiológica constitucional, todos eles de imperiosa consideração por ocasião do exame de cada singular relação contratual. Em enunciação sumaríssima, deve-se recordar que a Constituição brasileira, de feição sabidamente conciliatória, consagra pares axiológicos complexos (por vezes, aparentemente opostos, mas, em realidade, dialeticamente convergentes). Entre os fundamentos da República, enunciam-se “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa” (art. 1º, III); o rol de direitos fundamentais contempla a garantia do direito de propriedade (art. 5º, XXII) e a exigência de que a propriedade atenda a sua função social (art. 5º, XXIII); a ordem econômica se funda tanto na valorização do trabalho humano quanto na livre iniciativa (art. 170, caput); entre os princípios da ordem econômica, enunciam-se tanto a propriedade privada e a livre concorrência (art. 170, II e IV) quanto a função social da propriedade, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente e a redução das desigualdades regionais e sociais (art. 170, III, V, VI e VII).


Ademais, não é demais refletir que a nova redação aparentemente não vá trazer mudanças substanciais na maneira como jurisprudência e doutrina vêm, nos últimos anos, aplicando concretamente a função social, vis-à-vis da imposição de ordem constitucional inafastável pelo legislador ordinário.

Tais razões, entre tantas outras que a doutrina brasileira tem logrado demonstrar, prestam-se a demonstrar a inadequação de uma eventual linha de entendimento que venha a sustentar a exclusividade ou a primazia dos valores contidos na Declaração de Direitos de Liberdade Econômica para a investigação da noção de função social do contrato. Semelhantes razões hão de ser observadas, ainda, para a análise do parágrafo único acrescentado ao art. 421 do Código Civil, in verbis: “Nas relações contratuais privadas, prevalecerá o princípio da intervenção mínima do Estado, por qualquer dos seus poderes, e a revisão contratual determinada de forma externa às partes será excepcional”. Toda a cautela se justifica diante da utilização de expressões como “intervenção mínima do Estado” e “a revisão contratual (...) será excepcional”. Se, por um lado, o novo dispositivo pode promover uma louvável reflexão contra um paternalismo injustificado em relações paritárias, por outro lado, o propósito de blindagem máxima do contrato se coloca em inevitável rota de colisão com a necessidade de (re)equilíbrio de relações assimétricas.


4. DO CONTRATO DE ADESÃO


A MP altera, ainda, a redação do art. 423 do Código Civil, regulando a interpretação do contrato de adesão. Ao contrário da alteração meramente pontual (sem maior repercussão substancial) do caput, a alteração consistente na criação do parágrafo único se revela muito mais significativa – e, nessa medida, perigosa. Dispõe o novo dispositivo que, nos contratos excluídos da disciplina do caput (portanto, aqueles que não se qualifiquem como contratos de adesão), “a dúvida na interpretação beneficia a parte que não redigiu a cláusula controvertida”. Se, por um lado, o dispositivo pode incentivar o valor das condutas dos contratantes durante a fase de tratativas negociais – reflexo da boa-fé objetiva (art. 113 e Enunciado 170 CJF) e seus deveres anexos de lealdade, transparência e conduta –, por outro lado, atribui valor demasiadamente exagerado para a mera conduta do contratante de redigir inicialmente a cláusula controversa. Parece, à primeira vista, que efetivamente relevante deva ser não a mera redação inicial mas, sim, a oportunização à outra parte de espaço de debate amplo sobre o conteúdo da cláusula. De outro giro, poderá uma parte que sinta eventualmente prejudicada com certa cláusula não abrir negociação sobre aquele ponto, já que a nova norma lhe favorecerá: seria – poder-se-ia imaginar – mais inteligente não negociar certa cláusula ao invés de discuti-la, o que parece uma contradição que a nova norma legitima e contrária ao próprio espírito aparente da norma, qual seja, a valorização do debate sobre o conteúdo contratual na fase das tratativas preliminares.


5. REVISÃO CONTRATUAL (ARTS. 480 A E B)


A MP 881/2019 acrescenta, ainda, os arts. 480-A e 480-B ao Código Civil. O primeiro deles (o art. 480-A) estabelece a possibilidade, nas relações interempresariais, de as partes estabelecerem “parâmetros objetivos para a interpretação de requisitos de revisão ou de resolução do pacto contratual”. A norma parece reconhecer, em boa hora, a legitimidade (ao menos, em tese) das cláusulas de hardship, por meio das quais os contratantes pré-estabelecem certas circunstâncias aptas a deflagrar determinado mecanismo de revisão contratual.


Pode-se vislumbrar, contudo, pelo menos um expressivo risco subjacente ao novo art. 480-A. Faz-se referência à eventual tentativa de compreensão do dispositivo no sentido de uma suposta positivação da possibilidade de os contratantes afastarem por completo, mesmo que com base em critérios excessivamente abertos, a incidência dos mecanismos de revisão contratual. A matéria é complexa e merece cauteloso exame.


O art. 480-B, por sua vez, preceitua que, “(N)as relações interempresariais, deve-se presumir a simetria dos contratantes e observar a alocação de riscos por eles definida”. Uma vez mais, o propósito potencialmente louvável se faz acompanhar por risco grave. Isso porque o benfazejo ideal de deferência à autonomia privada não tem o condão de legitimar uma presunção abstrata de normalidade de toda e qualquer relação contratual interempresarial. Ainda que se tome por relativa a presunção estabelecida pelo dispositivo (postura necessária, vista a inviabilidade de uma presunção que se pretendesse absoluta na matéria), afigura-se temeroso que o advento da nova norma seja encarado como libertação do intérprete em relação ao imperativo de tutela de todas as pessoas (humanas ou jurídicas, empresárias ou não) na medida da sua concreta situação de vulnerabilidade.


6. SOCIEDADE LIMITADA DE ÚNICO SÓCIO


A nova norma introduz o parágrafo único ao art. 1.052, regulando que “a sociedade limitada pode ser constituída por uma ou mais pessoas, hipótese em que se aplicarão ao documento de constituição do sócio único, no que couber, as disposições sobre o contrato social”. Na prática, cria-se a sociedade limitada de único sócio, o que tendencialmente reduz os entraves para o indivíduo que deseja ser sócio único de pessoa jurídica e que não consegue constituir EIRELI, seja por não dispor de recursos para integralizar o capital social mínimo da EIREILI de 100 (cem) salários mínimos, por força do art. 980-A, seja porque deseja ser titular de mais uma companhia, restrição contida no §2º do art. 980. À parte das discussões acerca da criação ou não de novo tipo de sociedade pela nova norma – que teria relevância somente do ponto de vista estrutural e não funcional – o novo mecanismo viabiliza e facilita a abertura de novas sociedades limitadas com único sócio, o que, de fato, deve servir ao propósito de fomentar a atividade econômica no cenário nacional. Por outro lado, oportunamente deve-se analisar se a flexibilização de tais requisitos está servindo de escudo patrimonial e jurídico para frustrar interesses de terceiros credores dessas sociedades, que porventura possam estar enxergando na proteção do véu corporativo para essas sociedades menores uma barreira intransponível para a satisfação de seus interesses creditórios.


As inovações trazidas pela MP 881/2019 não são poucas nem de menor importância, como tampouco são totalmente ilegítimos os propósitos por ela veiculados. Justamente pela importância da matéria, maior razão teria assistido ao governo caso houvesse optado por uma via legislativa mais propícia à reflexão e ao debate necessários.


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