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Mero aborrecimento: impropriedades à luz da teoria da interpretação

A demora excessiva na espera da fila do banco, o atraso na entrega de um empreendimento imobiliário ou de um eletrodoméstico, a recusa indevida de uso de cartão de crédito e a inscrição indevida do nome de um consumidor nos cadastros restritivos de crédito: em comum, trata-se de fatos corriqueiros que, a princípio, não repercutiriam na esfera moral do indivíduo e que não passariam de meros dissabores inerentes à vida em sociedade. Certo? Depende – e  reside precisamente nessa resposta (de remissão ao caso concreto) o escopo destas breves considerações.


O papel de protagonismo das relações de consumo para a satisfação das mais básicas necessidades humanas no século atual aprofundou a hipossuficiência (técnica, econômica ou informacional) dos consumidores, colocando-os em posições de quase (e quiçá integral) dependência dos grandes fornecedores. A falha no fornecimento de energia durante uma cerimônia de casamento ou a recusa indevida ao tratamento de grave doença revelam que o descumprimento dos contratos pode produzir efeitos que não necessariamente se cingem à esfera patrimonial. Com efeito, não são raras as hipóteses em que o inadimplemento contratual repercute diretamente sobre a esfera existencial da pessoa humana, atingindo aspectos inerentes à sua dignidade.

Tais observações estão na base das preocupações com que a advocacia fluminense recebeu a notícia da aprovação, em 22/11/2014, da Súmula 75 do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que assim dispõe: “O simples descumprimento de dever legal ou contratual, por caracterizar mero aborrecimento, em princípio, não configura dano moral, salvo se da infração advém circunstância que atenta contra a dignidade da parte”.


Sem prejuízo ao propósito conciliador que parece ter inspirado o Tribunal, a frieza da literalidade do enunciado sumular ameaça a efetivação da garantia constitucional de ampla reparação dos danos morais (art. 5º, V e X, da Constituição). Tal ameaça tem sido diuturnamente concretizada em decisões judiciais que negam legítimos pleitos indenizatórios sob a genérica alegação da impossibilidade de configuração do dano moral em razão do inadimplemento contratual. O cenário revela-se especialmente grave porque a prática revela que uma expressiva parcela das decisões invoca o referido entendimento sem explorar a ressalva contida na parte final do próprio enunciado sumular.


O entendimento jurisprudencial associado à Súmula 75 do TJRJ dá sinais de fraqueza há tempos. Diversas iniciativas já vêm reconhecendo a necessidade imediata de extirpar o referido entendimento da práxis fluminense e nacional. Assim sucede, por exemplo, com o pedido de cancelamento protocolado no TJRJ pela Procuradoria-Geral da OAB/RJ, bem como com o chancelamento da tese do desvio produtivo do consumidor pelo STJ (e.g., AREsp 1.260.458/SP; AREsp 1.241.259/SP) e mesmo com a superação recente da Súmula 75 pela 21ª Câmara Cível do próprio TJRJ (Apelação nº 0027164-09.2017.8.19.0205). Todas essas iniciativas dão conta de que é preciso repensar a matéria a partir de duas principais premissas: os perigos do método subsuntivo e a importância central da fundamentação das decisões judiciais.


A metodologia do direito civil-constitucional, desenvolvida pela escola de Direito Civil da UERJ, apresenta contributos úteis para a análise e a superação do atual estado de coisas. Nesse sentido, a consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III, da Constituição Federal)  impõe o reconhecimento da tutela instrumental das situações jurídicas patrimoniais em prol da promoção das situações existenciais.


O conceito mais acurado de dano moral, permita-se resgatar, perpassa justamente pelos 4 (quatro) principais postulados filosóficos que compõem a dignidade: (i) a igualdade, (ii) a integridade psicofísica, (iii) a liberdade e (iv) a solidariedade. Viola a dignidade e, portanto, enseja o dever de reparar pelos danos morais (arts. 186 e 927 do Código Civil) a conduta daquele que atentar contra qualquer dos quatro corolários da dignidade. A toda a evidência, notará até o mais desavisado dos intérpretes que o conceito puro e preciso de dano moral não comporta reduções simplistas e meramente subsuntivas, tal qual se tem feito com base na Súmula 75 do TJRJ.


A Súmula 75 e o discurso do mero aborrecimento escamoteiam, nesse sentido, o perigo de retorno à hegemonia da técnica da subsunção, segundo a qual, em apertada síntese, a interpretação consistiria em uma atividade formal e mecânica de combinação dos fatos à norma mais específica. Um grande risco da adoção pura de uma tal linha de pensamento consiste, segundo a advertência da metodologia civil-constitucional, em se ignorar a relevância da análise casuística de cada caso concreto.


Se, por um lado, a análise casuística do que é ou não dano moral reparável tem o potencial de assegurar decisões mais justas, por outro lado, não se nega que assim se atribui ao julgador uma esfera maior de discricionariedade (embora sempre e necessariamente reconduzida à Constituição). Coloca-se, então, um ponto nevrálgico para o equilíbrio almejado: o mandamento constitucional de fundamentação da decisão judicial (art. 93, IX, da Constituição). O magistrado tem o dever inafastável, no exercício do seu múnus, de realizar uma análise profunda de todas as circunstâncias do caso concreto, perquirindo a tutela reclamada pela pessoa humana na medida da sua concreta vulnerabilidade. A exigência constitucional de fundamentação das decisões judiciais serve justamente para possibilitar que o controle da conformidade entre a decisão e o ordenamento jurídico não tenha por referência apenas o resultado (o decisum), mas igualmente o meio (a fundamentação da decisão).


Em contramão ao aludido ônus argumentativo, assiste-se à massificação de julgamentos na rotina contenciosa dos Juizados Especiais fluminenses em audiências que duram de 3 a 5 minutos e que, nem de perto, conseguem colher elementos fáticos para municiar o magistrado na tarefa de motivação da decisão. Nesse cenário, o discurso do “mero aborrecimento”, à semelhança do discurso da “indústria do dano moral”, representa grande risco à efetiva tutela da dignidade da pessoa humana, por impedir o controle de legitimidade do processo argumentativo de fundamentação das decisões judiciais.


Em um ambiente jurídico-social de renovado humanismo, insuflado pela imperiosa tutela da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil, deve-se atentar para o dever de cada membro do Poder Judiciário de vestir a toga assumindo e avocando, para si, a árdua (mas não impossível) tarefa de efetiva fundamentação das decisões judiciais. Trata-se de percurso complexo, porém necessário e promotor do resultado mais valoroso almejado pelo nosso sistema – a plena tutela da pessoa humana.


Autores:


JOÃO QUINELATO – Advogado. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor do IBMEC. Secretário-Geral da Comissão de Direito Civil e Presidente da Comissão de Estágio da OAB/RJ. E-mail: joao@lapaadvogados.com.br.

RODRIGO DA GUIA SILVA – Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCivil) e do Comitê Brasileiro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (AHC-Brasil). Advogado.


Confira na íntegra: https://lnkd.in/dD2c67g

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